II Moot Court em Direitos Humanos

CASO HIPOTÉTICO

AUTOR DO CASO HIPOTÉTICO

TIAGO MUNIZ CAVALCANTI: Procurador do Trabalho, MPT (2010), tendo exercido a função de coordenador nacional de erradicação do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho, CONAETE (2016/2017). Docente (conteudista e tutor) da Escola Superior do Ministério Público da União, ESMPU (2012). Autor de livros e artigos jurídicos. Doutorando em Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2015), pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela FBV/Recife (2008) e graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005).

Caso Hipotético:

Rutger Namur e outros vs. República Federativa do Brasil

Órgão Julgador:

Corte Interamericana de Direitos Humanos


I. A etapa pré-contratual

1. Rutger Namur e Anelise Marum, nascidos e domiciliados em Paramaribo, capital do Suriname, um pequeno país localizado na costa nordeste da América do Sul, receberam proposta para trabalhar na Fazenda Bico Verde, situada na cidade de Almeirim, noroeste do Estado do Pará. Durante a intermediação, promovida por agências de emprego informalmente vinculadas a produtores rurais brasileiros, o casal surinamês foi orientado quanto ao itinerário a percorrer e às despesas de transporte e custos operacionais, que somariam U$ 1.000,00 (mil dólares).

2. Decididos a fugir da crise e do desemprego que assolavam o país e a buscar uma melhor condição de vida para seus filhos A. M. N., B. M. N. e C. M. N. (16, 13 e 9 anos, respectivamente), Rutger e Anelise se desfizeram dos seus poucos pertences e, com o dinheiro arrecadado, adiantaram metade dos custos exigidos pelos recrutadores, partindo rumo ao trabalho prometido, sem claras definições sobre suas condições de execução.

3. O trajeto durou uma semana e incluiu transporte terrestre e fluvial. A região limítrofe entre os países foi atravessada irregularmente a pé, onde estrategicamente não havia controle de fronteiras. Chegando à Fazenda, situada em local distante do centro urbano, o casal tomou empréstimo com o proprietário da terra, Sr. Michel, a fim de quitar o débito com os recrutadores. Para garantir o pagamento, foram retidos os documentos do casal, os quais não lhes seriam devolvidos antes da quitação da dívida.

II. A etapa contratual

4. Na fazenda, Rutger e Anelise trabalhavam na produção do cacau para a comercialização de amêndoas secas (matéria prima para a produção do chocolate). Eles eram considerados “meeiros” de um pedaço de terra com aproximadamente 2 mil pés de cacau. O contrato verbal firmado entre as partes estabelecia a divisão da produção na seguinte proporção: 80% para o Sr. Michel, e 20% para o casal. Para que lhe sobrasse algo no final do mês, o casal trabalhava intensamente, dia e noite, no manejo de brotos, adubação, controle fitossanitário e colheita, realizada por meio da retirada manual dos frutos maduros, que deveriam ser empilhados para posterior retirada da amêndoa (o que exigia o auxílio dos três filhos do casal).

5. Os insumos (fertilizantes e defensivos) e a moradia (um galpão que dividam com aves e duas cabeças de gado) eram fornecidos pelo proprietário da terra. As camas eram improvisadas com tijolos e madeiras, em piso de chão batido, e não havia instalações sanitárias com saneamento básico. As fendas no teto do galpão que lhes servia de moradia eram cobertas com lonas pretas improvisadas, as quais eram insuficientes em épocas de chuva intensa, causando pequenos alagamentos. O trabalho de toda família era realizado sem qualquer equipamento de proteção individual, inclusive o manuseio e a aplicação dos fertilizantes.

6. Por vezes, o lucro obtido com o cacau nem sempre era suficiente para a subsistência da família, levando Rutger a realizar roço de juquira (limpeza da área para formação de pasto) em propriedades da região. Nesses momentos, em razão da ausência paterna na produção do cacau, o auxílio das crianças se fazia ainda mais necessário, exigindo-lhes maior dedicação ao ofício.

7. Toda a produção do cacau era comprada por um atravessador (cerealista), Sr. Rodrigo, que, por sua vez, revendia a mercadoria para Chocolate Brasil Indústria S.A., empresa responsável por processar a matéria prima e produzir os chocolates comercializados no País e no exterior.

8. Após operação promovida pela Polícia Federal para investigar denúncia anônima de trabalho escravo no local, o casal, que não tinha autorização para fixar residência e trabalhar no Brasil, foi deportado para o país de origem. Entre a operação e a deportação, os adultos foram encaminhados para a Delegacia de Santarém, onde ficaram detidos por duas semanas, e as crianças ficaram sob a custódia do Orfanato do Estado de Pará, na mesma cidade.

9. Durante a operação, o Delegado deixou de realizar a prisão em flagrante delito por entender que: (1) não havia empregador, pois os estrangeiros trabalhavam na condição de autônomos; (2) apesar de trabalhar em condições degradantes, o casal não teve sua liberdade de locomoção tolhida.

III. A etapa pós-contratual

10. Ao tomar conhecimento do caso, a Comissão Pastoral da Terra protocolizou denúncia formal perante o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho e a Defensoria Pública da União, a fim de que adotassem as medidas pertinentes no âmbito de suas competências.

11. No âmbito criminal, a Procuradoria da República no Município de Santarém denunciou o proprietário da terra e tomador direto do trabalho, Sr. Michel, pelo crime de redução à condição análoga à de escravo. Não tendo sido possível, durante a instrução processual penal, renovar a produção probatória testemunhal, tampouco o depoimento das vítimas, deportadas para seu país de origem, a sentença judicial absolveu o réu por falta de provas. A decisão foi mantida nas instâncias superiores, tendo transitado em julgado.

12. No âmbito civil-trabalhista, o Ministério Público do Trabalho ajuizou ação civil pública em face do proprietário da terra, Sr. Michel, do atravessador, Sr. Rodrigo, e da compradora final da matéria-prima, a empresa Chocolate Brasil Indústria S.A., deduzindo pedidos inibitórios (obrigações de fazer e não-fazer) e indenizatórios pelo dano moral coletivo consubstanciado na submissão de trabalhadores à condição análoga à de escravo. Após julgados procedentes em primeira instância, o Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Pará e Amapá) reverteu a decisão monocrática, julgando-os improcedentes. Em suas razões de decidir, o Tribunal observou que “não houve relatos de restrição da liberdade de locomoção dos trabalhadores, elemento imprescindível à caracterização do trabalho escravo contemporâneo. Na verdade, os relatos indicam anuência espontânea ao pacto laborativo, com possibilidade de ir e vir do local de trabalho a qualquer momento, não obstante a ausência de transporte público regular”. Ademais, o Acórdão ressaltou que a realidade vivenciada pelos trabalhadores é costume do local: “Lamentavelmente o quadro fático evidenciado nos autos representa a dura realidade do interior do Estado do Pará: miséria, semi-qualificação, trabalhadores rurais à margem das leis trabalhistas. As condições de trabalho na fazenda são só uma face do contexto de pobreza extrema em que vivem os moradores da região de Almeirim”. Após denegado seguimento ao recurso interposto pelo autor da ação, a decisão transitou em julgado.

13. A Defensoria Pública da União ajuizou reclamação trabalhista em face do proprietário da terra, Sr. Michel, buscando o reconhecimento do vínculo de emprego, os direitos trabalhistas dele decorrentes e, ainda, indenização por dano moral individual em favor dos representados. Por entender imprescindível a presença dos reclamantes aos atos processuais, o Juiz do Trabalho de Laranjal do Jari, Monte Dourado, determinou, em despacho saneador, a suspensão processual. Não tendo a Defensoria Pública da União se insurgido contra a decisão, a situação perdura há vários anos.

IV. Sistema brasileiro de combate à escravidão e ao tráfico de pessoas

14. A abolição formal da escravidão, ocorrida no dia 13 de maio de 1888, não significou sua redenção em território nacional. Embora a Lei Áurea tenha eliminado formalmente a possibilidade jurídica de se exercer sobre o homem o direito de propriedade, a manutenção da estrutura econômica e social do período pré-abolicionista foi a mola propulsora para a existência da chamada escravidão contemporânea em território brasileiro.

15. O Brasil continuou a ser um país escravocrata, e isso decorreu sobretudo de quatro fatores primordiais: a desigualdade social vertida na condição de miserabilidade dos escravos recém-libertos, ou seja, a existência de uma exclusão abissal entre brancos e negros, entre senhores e escravos; o vazio protecionista em âmbito rural, mormente porque a legislação protetiva dos trabalhadores do campo remete à década de 1960, de modo que por muito tempo os escravos “libertos” e seus descendentes ficaram sob a falsa égide da liberdade de contratar; o sistema agrário baseado no latifúndio para produção de commodities, onde grandes propriedades monocultoras se utilizam da força de trabalho de uma população miserável e sem acesso a direitos elementares; e as relações autoritárias de poder, ou seja, o conhecido coronelismo.

16. A partir da década de 1990, o País passou a implementar políticas públicas repressivas à escravidão contemporânea. Delas, destaca-se a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel com a finalidade de coordenar a atuação fiscal móvel e potencializar o combate ao trabalho escravo. Desde a sua instituição, foram resgatados mais de 50 mil trabalhadores em condições análogas a de escravo em todo o território nacional, sendo grande parte no Estado do Pará, o que se deve, sobretudo, à existência de postos de trabalho mal remunerados que exigem pouca ou nenhuma qualificação profissional.

17. No plano normativo internacional, o Brasil ratificou todas as normas internacionais proibitivas da escravidão contemporânea, do trabalho infantil e do tráfico de pessoas, com destaque para (em ordem cronológica): as Convenções nº 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório (1930 e 1957, respectivamente); o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966); o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969); a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Inumanos ou Degradantes (1984); a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989); a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e Membros das suas Famílias (1990); a Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho sobre a Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação (1999); e o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (2000).

18. No plano constitucional, a República Federativa do Brasil elevou à condição de direitos fundamentais: a proteção à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); a cidadania (art. 1º, II); os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV); a vida, a liberdade, a igualdade e a segurança (art. 5º, caput); a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I); a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais (art. 3º, III); a promoção do bem de todos (art. 3º, IV); a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II); a não submissão à tortura ou a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III); a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem (art. 5º, X); a liberdade de exercício de trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII); a liberdade de locomoção (art. 5º, XV); a função social da propriedade (art. 5º, XXIII); a proibição a trabalhos forçados (art. 5º, XLVII, c); a valorização do trabalho humano e a justiça social (art. 170, caput); a proteção integral e com absoluta prioridade à criança, ao adolescente e ao jovem, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, caput).

19. No plano infraconstitucional, o art. 149 do Código Penal, que tipifica o crime de redução à condição análoga a de escravo, verbera que será punido com reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência, todo aquele que “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.

20. O mesmo diploma legal estabelece, em seu art. 149-A, pena de quatro a oito anos de reclusão, e multa, àquele que “agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV - adoção ilegal; ou V - exploração sexual”.

21. A Lei de Migração recentemente instituída pelo Estado brasileiro autoriza a residência ao imigrante que tenha sido vítima de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito agravada por sua condição migratória (art. 30, II, g).

V. Procedimentos perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos

22. Diante da situação de omissão do Estado brasileiro em punir os responsáveis pela violação dos direitos humanos de Rutger Namur, Anelise Marum e seus três filhos, deixando ainda de indenizá-los pelos danos sofridos, a Comissão Pastoral da Terra submeteu o caso à ONG Internacional Freedom and Dignity, responsável por interpor uma petição perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

23. Uma vez apresentada a denúncia, deu-se início ao processo. Na etapa de admissibilidade, a República Federativa do Brasil alegou a falta de esgotamento de recursos internos, mormente porque os representados não apresentaram demanda perante o Poder Judiciário brasileiro. Ao final, a CIDH declarou a admissibilidade do pedido e, no mérito, emitiu o seu relatório pela atribuição de responsabilidade internacional ao Estado brasileiro pela violação dos direitos previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

24. Não tendo o Estado brasileiro cumprido nenhuma das recomendações formuladas pela Comissão, o caso foi submetido à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.